O chão que faltou, o mundo que pesou — a ausência dos pais na infância
- Psicóloga Beatriz Job
- 6 de mai.
- 4 min de leitura
Você sabia que a sensação de “carregar o mundo nas costas” ou a de estar constantemente “pisando em ovos” pode ser uma marca silenciosa deixada pela ausência ou negligência dos seus pais durante a infância?

Rapidamente, ao se pensar ou falar sobre ausência ou negligência parental, costuma-se imaginar uma criança sozinha e desamparada. No entanto, até mesmo uma criança que cresce com essas figuras presentes pode ser vítima desse tipo de abandono. Isso porque o que define esse cenário não é apenas a presença ou ausência física dos pais, mas o não cumprimento de suas funções psíquicas durante o desenvolvimento emocional da criança.
Mas, afinal, o que são essas funções psíquicas? É o que chamamos de “função materna e paterna”. Essas funções são fundamentais para o desenvolvimento da personalidade, da capacidade de diferenciar o campo imaginário da realidade e de como nos relacionamos com os outros e conosco. Capacidades e qualidades que apenas a presença física da mãe ou do pai não é capaz de oferecer.
A Figura do Pai e a Função Paterna
A figura do pai é o que gera a vida, providencia o necessário para a sobrevivência da criança — proteção (da mãe e do bebê), alimento, segurança. Usa da força física e da sabedoria para alcançar recursos e, se necessário, construir e reconstruir quantas vezes for necessário, até que mãe e bebê tenham mais autonomia.
Já a função paterna tem algo mais profundo: seu papel central é introduzir a criança na realidade — apresentar normas, riscos, limites, consequências e autoridade. É mostrar como agir na sociedade, como se defender quando necessário e o que fazer diante dos desafios, sejam eles emocionais ou não.
“É sobre como reagir aos obstáculos, sem precisar levar todo
o peso da vida nas costas.”
Quando a figura do pai falta — seja por abandono, morte precoce, ausência emocional ou negligência — a criança pode desenvolver sentimentos profundos de rejeição, abandono, baixa autoestima e carência afetiva. Muitas vezes, surgem também raiva e mágoas reprimidas, que se manifestam em comportamentos impulsivos, agressivos ou autossabotadores na vida adulta.
E quando a função paterna não é exercida, a criança pode crescer com grandes dificuldades em lidar com frustrações, em estabelecer limites, em aceitar figuras de autoridade ou seguir regras. A falta de noção de como se incluir na sociedade causa também conflitos existenciais (por não saber seu lugar no mundo) e uma sensação (aparentemente inexplicável) de vazio interior.
Vale reforçar que, embora a figura paterna seja insubstituível, a função paterna pode ser assumida por outros ao longo da vida: professores, líderes, tios, avôs, terapeutas e até mesmo pela mãe — desde que esta não tente ocupar a figura do pai, mas apenas sua função, quando necessário.
A Figura da Mãe e a Função Materna
A figura da mãe é quem alimenta, aquece, embala e atende às necessidades do bebê por meio do cuidado. É natural que, nos primeiros meses de vida, o bebê tenha total dependência da figura materna, pois ele ainda não tem consciência de que ele e a mãe são seres separados — uma das ligações mais importantes para a formação da psique. Essa “fusão” permite uma comunicação única: a mãe compreende os sinais do corpo e do choro do bebê. “Hum, é cólica!” “Hum, é fome!” “Hum, é o dentinho que está nascendo!” etc.
A função materna é ainda mais sutil, pois se trata de EXCLUSIVAMENTE da presença emocional. É o acolhimento silencioso no balançar do colo, é a permissão para um choro aparentemente “sem motivo”. Essa função não olha apenas para as necessidades físicas, como a figura materna, mas também para as necessidades emocionais.
Por isso, na Psicanálise, dizemos que a mãe constrói o chão emocional. É no colo, no acolhimento e a partir da voz calma que o bebê constrói a sensação de amparo e pertencimento. Esse aprendizado se registra no inconsciente e se manifesta na forma como a criança, no futuro, irá amar, confiar e construir vínculos com os outros.
“Essa criança vai crescer com capacidade de continuar de pé,
mesmo quando tudo parecer desmoronar.”
Quando a figura materna falta — também por abandono, morte precoce, ausência emocional ou negligência — a criança cresce com uma profunda sensação de desamparo. O mundo e as relações tornam-se ameaçadores, e ela se convence de que precisa dar conta de tudo sozinha. Aprende a regular suas emoções apenas após episódios extremos de raiva ou choro — o famoso “AGIR SEM PENSAR” — porque, quando bebê, suas necessidades emocionais não foram reconhecidas. Ela foi deixada chorando no berço até se esgotar e se acalmar sozinha.
Uma criança que cresce sem o acolhimento da função materna se sentirá pequena, invisível e dificilmente permitirá ser ajudada, pois não acredita que o outro seja capaz de compreender ou acolher sua dor.
Assim, compreende-se que mesmo quando as figuras estão presentes, suas funções podem ser negligenciadas. E que, quando isso ocorre, não é uma sentença definitiva: assim como a função paterna, a função materna também pode ser exercida por outros — avós, tias, professoras, terapeutas.
Qual das duas funções é mais importante para o desenvolvimento de uma criança?
Não existe uma mais importante que a outra. São funções complementares. Cada uma com seu papel essencial: a mãe como o chão emocional que sustenta, acolhe e valida a existência; o pai como aquele que apresenta o mundo, os limites e as regras do convívio social. Nenhuma deve ser anulada ou colocada acima da outra.
Quando uma dessas bases falha ou não se desenvolve adequadamente, deixa feridas silenciosas — muitas vezes invisíveis, até mesmo para quem as carrega — que influenciarão diretamente na forma como essa criança lidará com frustrações, perdas, decisões e na construção das suas relações futuras.
Portanto, talvez essa postura de querer carregar o mundo nas costas, de tentar resolver tudo sozinha e a constante sensação de insegurança podem ser sintomas de uma ferida emocional antiga, formada ainda na infância, e que precisa ser cicatrizada.
Felizmente, é possível cicatrizar essas feridas por meio de ambientes de escuta, afeto e acolhimento. Assim, é possível ressignificar o passado, tirar de si os pontos de interrogação desta época e reconhecer novas formas de amor, cuidado e proteção — inclusive consigo.
Afinal, diferente de quando bebê, agora você é capaz de cuidar de si!
No fim das contas, o mais importante não é mudar o passado, mas construir um presente com mais consciência, acolhimento e amor.

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